Não será fácil imaginar um menino de seis anos fazer a pé, sozinho, cerca de trinta quilómetros por estradas desconhecidas, todavia, isso aconteceu comigo, quando num impulso infantil decidi encontrar os meus pais, sabendo apenas que eles estariam algures numa herdade agrícola que ficava para os lados do sol do meio-dia.
Ao certo não sei qual era a minha idade, presumo que não teria mais de seis anos, porque ainda não frequentava a escola, e porque dificilmente poderia ter menos. O dramatismo daquele dia, ainda sobrevive na minha memória em pungentes pormenores que passo a contar.
Eu vivia com os meus pais em Monchique, mas naquele ano os meus pais foram num rancho de jornaleiros (grupo de pessoas em trabalho sazonal pago ao dia) para a monda do arroz na herdade da Comporta, no conselho de Alcácer do Sal, e como as crianças não podiam acompanhar os pais, fiquei entregue a um casal de camponeses, que vivia num monte em plena serra de Monchique.
Este foi o período, que me lembro, mais infeliz da minha infância. Viver com duas pessoas desconhecidas e idosas, num monte isolado, onde não havia outras crianças com quem pudesse brincar, e dormir num celeiro, lúgubre como o purgatório, tendo como cama uma enxerga de fatanas de milho sobre um monte de esteiras de cana e como agasalho a roupa do corpo e duas mantas para me tapar. Luz, só a do luar que entrava pelas frinchas da porta de madeira velha e carcomida, que uma aldraba fechava por fora. Mas pior que tudo, era o cheiro nauseabundo de batatas podres e não ter as atenções e os carinhos de minha mãe.
De noite, o isolamento e a escuridão violentava-me, provocavam-me pesadelos e terrores noturnos, constituindo um fértil campo para a minha imaginação. O medo fazia-me encafuar nas mantas, pois parecia-me ouvir que algo ou alguém mexia na aldraba da porta. Então fechava os olhos, apertando as pálpebras com força e juntava os joelhos junto da boca imaginando ser um bicho de conta (um daqueles bichinhos que, como defesa, se enrola até se transformar numa bola). Frequentemente tinha pesadelos que me faziam acordar em pânico, alguns eram recorrentes: Uma sombra invadindo a penumbra do celeiro, fazia-me olhar para a porta, aberta apenas no sonho, e no vão iluminado pelo luar via uma descomunal silhueta canina que acreditava ser um lobisomem. Outras vezes o lobisomem entrava de rompante no celeiro, acordando-me aterrorizado a debater-me com as mantas, que no meu pesadelo era a fera que saltara sobre mim. É espantoso, como tantos anos depois, a evocação destes pesadelos ainda me faz arrepiar.
Algumas vezes, em várias divagações oníricas, urinei na cama, fazia sonhando que estava a fazer num local apropriado (ainda me lembro da sensação de urinar a dormir e a sonhar, mais agradável do que fazê-lo acordado), depois passava o dia angustiado pela vergonha de a senhora ver a mancha de urina na enxerga.
Quando acabou a monda do arroz, o rancho onde os meus pais estavam integrados foi para a herdade agrícola Morgado do Reguengo, no concelho de Portimão, para as vindimas e apanha de azeitonas. Entretanto a minha mãe foi-me ver e perguntou-me se eu queria ir com ela ou se preferia continuar no monte, eu disse que preferia continuar no monte, talvez o dissesse por estarem presentes as pessoas que generosamente me tinha acolhido, porque depois de a minha mãe abalar arrependi-me, prostrando-me à noite, na solidão da minha cela, num choro violento.
Uns dias depois perguntei ao camponês se o Morgado do Reguengo ficava muito longe, ele estendeu um braço e com um dedo indicou um ponto algures na direção do sol e disse: "a seis léguas daqui". É óbvio que eu não sabia avaliar o que seriam seis léguas, mas logo me achei capaz de as fazer a pé.
Com argúcia infantil planeei a evasão e desde então à cautela, sem dar a perceber ao casal a minha vontade de fugir dali, comecei a amealhar, num canto escondido do celeiro, figos secos para me mitigar a fome na viagem. E numa noite, deitei-me com a ideia fixa que de manhã, quando a aldraba da porta do celeiro fosse levantada, empreenderia de imediato a viagem com destino à herdade, que sabia ficar para o lado do sol do meio dia. Pouco ou nada mais sabia da geografia do Mundo.
Na manhã daquele dia fui acordado pela ansiedade, era muito cedo, não entrava claridade pelas frestas da porta, mas não quis voltar a adormecer, fiquei acordado e imóvel, como um animal assustado dentro da sua toca, esperando ouvir os passos pesados do velho camponês. Em breve, como habitualmente, ele rodaria a aldraba.
Apesar da minha ansiedade permaneci deitado até ao momento que a porta foi destrancada, pois logo após levantei-me, coloquei os figos secos nos bolsos das calças, abri um pouquinho a porta sem fazer barulho e sub-repticiamente esgueirei-me para a rua.
Ainda era noite e havia nevoeiro. "Ainda bem que não chove" pensei (tinha chovido muito dois dias antes). Os contornos das coisas eram difíceis de distinguir, mas eu conhecia de memória o caminho carreteiro até à estrada alcatroada.
A claridade do dia fez-se presente já eu tinha percorrido alguns quilómetros, mas por conta da neblina continuei fresco e invisível, mas à medida que ia descendo a serra, a neblina tornava-se cada vez mais ténue, dissipando-se lentamente, até permanecerem apenas alguns farrapos planando no vale.
A temperatura subia. O sol fazia o seu percurso inexorável num céu azul claro, insidioso, parecendo querer castigar-me por tão insensata empresa. A humidade nas folhas das árvores e arbustos que ladeavam e estrada secara e comecei a sentir na boca a mesma secura.
A serra era toda a minha referência do universo, então foi com admiração que constatei que o mundo não era todo igual. A paisagem, antes serrana e a estrada tortuosa, de curvas e contracurvas sempre a descer, passou a plana e retilínea. Para trás tinha ficado o arvoredo que projetava sombra para a estrada, dando lugar a árvores dispersas de sombras esquivas.Veio-me agora ao pensamento, que um garoto maltrapilho, caminhando sozinho pela estrada, deveria chamar a atenção de quem o visse, mas ninguém me abordou a perguntar quem eu era, de onde vinha, para onde ia.
Acabaram-se os figos secos, a fome e a sede tirava-me a vontade de prosseguir. O sol atingira o zénite e reverberava vertical em baforadas de fogo, fazendo a estrada cintilar. Eu tinha os pés feridos. Mas tinha que continuar. "Tens que continuar, já falta pouco". Era este o pensamento que me guiava, como uma voz interior a segredar-me.
Quando já me encontrava no limite da minha resistência, surgiu no mesmo sentido uma carroça carregada de lenha puxada por duas mulas. O cocheiro, um homem idoso a quem faltava um braço, fez parar a carroça quando lhe perguntei se o Morgado do Reguengo ficava muito longe. "Fica perto, mais à frente encontrarás uma estrada de terra, segue por ela até encontrares três silos, é aí o Morgado". Perguntei-lhe o que eram silos e ele descreveu-os como sendo umas casas redondas e altas.
Estava perto do meu destino, todavia, sentia a solidão e o desalento como não a sentira antes. Doíam-me as pernas e os braços. Os meus pés não suportava pisar terra, os dedos estavam colados uns aos outros pelo sangue e lixo. Os meus lábios inchados e gretados. Tinha a garganta seca, a minha boca não produzia saliva. Os meus olhos ardiam e pareciam ter areia.
O cansaço, as dores, a sede e a fome, tiraram-me a vontade de continuar. Olhava a estrada de terra que parecia não ter fim. Não havia casas. Não havia gente. A que distância estaria a herdade? Quanto tempo mais teria que andar até encontrar os meus pais? Esquecera-me perguntar isto ao cocheiro e não havia ninguém a quem pudesse perguntar.
Quando olhava para a estrada de terra sem coragem de a percorrer, os meus olhos foram atraídos para dois pormenores a que devo a minha sobrevivência. A poucos metros de mim havia um pontão e por baixo passava uma ribeira (Ribeira de Boina), um pouco adiante havia árvores com pontos vermelhos sobressaindo do verde da folhagem, supus serem fruta boa para comer (eram romãs).
Entre a fome e a sede, a minha prioridade foi a sede. Dirigi-me para a ribeira. A água corria límpida, entrei na ribeira e bebi o néctar vital até me saciar totalmente. Lavei os pés, tinha feridas nos interstícios dos dedos, tomei banho sem me despir Depois dirigi-me para as árvores que supunha serem de fruta.
Muitas romãs na árvore estavam ao meu alcance, algumas estavam abertas, mostrando os bagos vermelhos. Provei um bago, era sumarento e doce, provei outro e outro.
Voltei à ribeira com algumas romãs. Comi sôfrego os bagos das romãs que abri com a ajuda de uma pedra cortante, amansando assim a fome que me torturava.
Água e fruta, embora não seja, do ponto de vista nutricional, uma refeição satisfatória, foram o maná divino que me restabeleceu a energia e a esperança (desde então, a Ribeira de Boina e as romãzeiras estão associadas, na minha memória, à minha sobrevivência).
Sentado na margem da ribeira, com os pés mergulhados na água, a sede e a fome saciada, caí no torpor, apetecia-me dormir ali, deixei-me cair de costas nas folhas largas e verdejantes das plantas da margem, e fechei os olhos para dormir, mas a voz interior que me guiava disse-me que tinha que continuar antes que fosse noite. Voltei à estrada de terra.
A última etapa, embora curta, viria a ser a mais difícil, pelas dores que as pedrinhas da estrada de terra provocavam nos meus pés feridos.
Talvez até seja possível, a quem ler isto que escrevo, imaginar como desgraçada e desesperada era a minha situação, mas é-me difícil descrevê-la. Lembro-me de pensar que se eu morresse, acabaria o sofrimento e os anjos levar-me-iam para o céu (o meu avô materno tinha morrido recentemente e tinham-me dito que os anjos levaram-no para o céu e ele estava bem). Ainda saboreava este pensamento quando avistei as três casas redondas e altas que o homem sem um braço descrevera como sendo os silos.
A visão dos silos recompôs-me o ânimo, embora exausto e ferido, estava finalmente perto do fim da minha estrada. Ali, naquela herdade, estariam os meus pais.
O sol já esmaecia quando entrei nas instalações da herdade. Soou uma sineta (anunciando o fim do dia de trabalho) e um homem apareceu, perguntei-lhe se sabia dos meus pais e ele indicou-me um armazém onde pernoitava um rancho, fui ao armazém, mas não encontrei vivalma, no entanto confirmei com alegria estar no local certo. Mesmo na penumbra reconheci a arca forrada a folha-de-flandres dos meus pais. Extenuado, estirei-me na cama que estava perto da arca, que supus ser dos meus progenitores, e adormeci.
Fui acordado pela minha mãe.
Eu pensava que a minha mãe ficaria contente quando me visse, mas, ao contrário do que eu pensava, se houve contentamento foi breve, pois logo se manifestou preocupada com o meu estado e por eu ter saído do monte sem dizer nada ao casal de camponeses. Um tempo depois chegou à herdade o pobre camponês, para dar a notícia à minha mãe do meu desaparecimento e saber se eu tinha ali aparecido. Coitado do homem, dera por minha falta na hora do almoço, procurou por todo o monte e montes vizinhos. Desesperado atrelou a burra à carroça e fez o mesmo percurso que eu fiz a pé.
Muitos anos depois fiz de carro o mesmo percurso. O conta-quilómetros registou 29, 600 Km.
O "Morgado do Reguengo" é agora um resort turístico com hotéis, piscinas de campos de golfe.
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