sexta-feira, 25 de abril de 2025

OS GRILOS

OS GRILOS CANTORES
Embora os dias anteriores tenham sido de chuva e chuvisco, hoje esteve um dia soalheiro e seco. É Primavera, a estação das flores, dos perfumes silvestres e de algo que me encanta, o canto dos grilos.
O meu encanto pelo canto dos grilos persiste por força da recordação de quando eu era garoto caçar grilos e mantê-los em casa alimentados a alface.
Caçar grilos era naquele tempo uma arte que os mais novos aprendiam com os mais velhos. Geralmente formava-se um grupo de quatro ou cinco rapazes para caçar grilos e fazíamos disso um desafio.
A primeira coisa que fazíamos era levarmos na cabeça uma boina para transportar os grilos que conseguíssemos apanhar. Depois cada um colhia uma haste de aveia selvagem, limpava-se, retirando as espiguetas, ficando assim uma haste maleável numa das pontas para fazer cócegas ao bichinho, depois íamos para um local de onde se ouvia as serenatas, o cri-cri-cri-cri, geralmente era onde havia serralhas, pois são o principal alimento dos grilos.
Os grilos, só os machos, colocam-se na entrada da sua toca e cantam com estridência para conquistar uma companheira. Para os surpreender era necessário pôr-nos à escuta para localizarmos o local onde um cantava, depois aproximávamo-nos pé ante pé, devagarinho, levantando bem os pés, primeiro assentava-se o calcanhar, depois lentamente a planta, porque mesmo que pequeno o ruído de uma folha seca ao ser pisada alertava o cantor e ele refugiava-se na toca Se o grilo parasse de cantar, parávamos também de andar, retomando a progressão quando o voltávamos a ouvir, quando estávamos pertinho e o grilo se calava, era porque ele se refugiava na toca, às vezes ainda o surpreendíamos virado de frente para o refúgio de asas em concha a estridular. Quando isso não acontecia, procurávamos uma pequena área limpa de ervas e um buraco mais ou menos oblíquo. O buraco era a entrada da toca. Para fazer o morador sair da toca introduzíamos nela a haste devagarinho com suaves movimentos de vai e vem para que a ponta fizesse cócegas ao bichinho, fazendo que ele saísse. Outra técnica usada era urinar para o buraco, um acto pouco recomendável, tenho hoje consciência disso.
Quando o grilo saía da toca, apanhávamos com muito cuidado para não lhe trilhar as asas, pois estas constituem o seu aparelho estridulatório, e metíamo-lo na cabeça por baixo da boina.
E assim, no fim de algum tempo, regressávamos a casa com os bichinhos a fazerem-nos cócegas no couro cabeludo. Depois de exibirmos a colheita e sabermos quem era o campeão da caçada, colocávamo-los em gaiolas artesanais feitas por nós. Fazer as gaiolas para os grilos era também uma arte que os mais velhos ensinavam aos mais novos.
Outra actividade era fazer trocas de grilos cantores. Para sabermos se eram bons cantores assobiávamos uma melodia para os incitar. Um bom cantor valia dois que cantassem menos, grilo que não respondesse não valia nada e era devolvido ao campo (coitado do bichinho, traumatizado, sem namorada e sem casa).
Diziam que dava sorte ter grilos em casa como animais de estimação. Mas o tempo de sorte era curto, porque curto é o tempo de vida de um grilo adulto.
Diamantino Rosa.

domingo, 15 de dezembro de 2024

O NEVÂO

 O Algarve, devido à sua geologia, divide-se em três regiões principais: Serra, barrocal e litoral. Na serra por vezes neva, enquanto no litoral e barrocal é uma ocorrência muito rara. Mas recordo-me de um dia ter caído um grande nevão também no barrocal.


Na altura, eu e a minha irmã, andávamos numa escola primária, que distava cerca de oito quilómetros da casa onde vivíamos numa herdade agrícola, distância que habitualmente tínhamos de percorrer a pé por caminhos rurais ou atravessando as culturas, pois demoraria muito se fossemos pela estrada.
Na manhã daquele dia, eu e a minha irmã, saímos cedo de casa para irmos para a escola, não lavamos a cara porque a água no cântaro estava congelada. Na rua estava tanto frio que dos beirais dos telhados pendiam pingentes de gelo e pelas nossas bocas e narizes saiam nuvens de vapor. Como eu andava descalço (como era comum andarem os rapazes pobres da minha idade), os meus dedos dos pés retraíam-se no contacto com o chão gelado. A água nas poças do caminho também congelara e, depois de pisadas pelos animais que já tinham saído para as lavouras, eram lâminas de gelo cortantes como pedaços de vidro. Quando tínhamos andado não mais de trezentos metros, eu, não suportando o frio e ferimentos nos pés, voltei para casa. A minha irmã seguiu, provavelmente por estar usando sapatos.
Pouco tempo depois, começou a cair obliquamente do céu, impelidas pela aragem que soprava do lado da serra, que ali ficava a norte, umas farripas brancas, que foram gradualmente vestindo de branco os telhados, o chão, as árvores e as sementeiras. Foi para mim uma novidade ver tudo coberto de neve como se fosse por um lençol branco e, na minha ignorância do tamanho do mundo, pensei que todo ele estaria assim.
Antes da hora do almoço, como a neve não parava de cair, a sineta da herdade foi tocada a dar ordem para que os animais fossem reconduzidos às manjedouras e as pessoas que trabalhavam no campo foram dispensadas para retornaram às suas casas.
Depois do almoço deixou de nevar, apenas soprava uma aragem fria, e a neve deu azo a brincadeiras na rua, havia alegria nas famílias dos assalariados e jornaleiros a agredirem-se com bolas de neve, mas preocupação nos meus pais. A minha irmã não regressara da escola na hora habitual.
Como a minha irmã estaria retida na escola impedida de regressar a casa se não a fossem lá buscar, o meu irmão, um moço voluntarioso com apenas dezassete anos, sem medir os riscos pôs-se a caminho para a ir buscar, foi uma decisão verdadeiramente audaz e viril, pois ele não conhecia o caminho para a escola porque estava na herdade havia pouco tempo e nunca fora para as bandas onde se situava a escola.
Da porta da casa vi o meu bravo irmão desaparece a cortar caminho por entre as alfarrobeiras todas vestidas de branco.
Entretanto a noite caiu e começou novamente a nevar e como tardava o regresso dos meus irmãos, eu e os meus pais, embrulhados em mantas incapazes de nos protegerem do frio, fomos para junto dos silos no limite da aldeia, esperá-los, mais ninguém estava na rua, só nós três num mudo desespero como se alguma coisa muito má estivesse eminente.
Como o meu irmão e a minha irmã tardavam em aparecer, o meu pai foi pedir ao fiel do armazém que tocasse a sineta para que eles, eventualmente perdidos algures no nevão, atinassem com o destino.
Naquela noite de singular frieza, o silêncio era absoluto na escuridão absoluta. Não se ouvia, mesmo que diáfano, o ramalhar das árvores, nem o latir dos cães, nem o piar distante de um mocho solitário. Quando a sineta começou a tinir, foi como se lanças me trespassassem a cada badalada. Curiosamente, a sineta era tocada diariamente quatro vezes a horas certas, para dar ordem de pegar ou largar o trabalho a todos os trabalhadores da herdade, pelo meu irmão, ajudante do fiel do armazém, o seu toque era distinto, enérgico e de cadência certa, o daquela noite refletia a idade avançada e cansaço do fiel, que para chegar à açoteia onde estava a sineta, teve que subir um lanço de escada de vinte e cinco degraus.
Permanecemos junto dos silos, de olhos pétreos fixos na bruma gelada banhada de mistério, procurando o mais ínfimo sinal. A bruma era tão densa que eu estendendo o braço não conseguia ver a minha própria mão. O tempo de espera parece-me ter sido muitas horas, não sei quantas de facto, mas sei que foram talvez as horas mais angustiantes da minha vida. A certa altura surgiu, emergindo vacilante da névoa um vulto vago e informe que não parecia ser gente, avançando num passo lento, tão lento que não dava para perceber se avançava ou se estava parado, depois mais nítido deu para perceber ser o meu irmão com a minha irmã sobre os ombros. Finalmente salvos para contentamento de toda a aldeia, é que entretanto toda a gente tinha vindo para a rua procurando saber porque tangia a sineta demoradamente, algo jamais acontecido a semelhante hora, parecendo anunciar uma desgraça. Ademais, tocada pelo velho Vieira.
Já em casa, o meu irmão enquanto se aquecia no fogo aceso na lareira e comia umas sopas de café quente, contou-nos a sua aventura. Ele chegara à escola já no lusco-fusco do fim da tarde e uma funcionária entregou-lhe a irmã. Puseram-se então a caminho, mas entretanto a noite caíra e toda a paisagem foi engolida pela escuridão e assim eles só podiam seguir guiados pela intuição, a ausência de estrelas no céu, os trilhos imperceptíveis sob a neve e um frio demoníaco, fazia ser imprevisível o seu destino. Como não parava de nevar, houve uma altura que eles abrigaram-se debaixo de uma árvore onde não nevava, pois a neve não conseguia trespassar o teto vegetal, acumulando-se na folhagem, mas uma pernada não resistiu ao peso, pariu-se e eles quase foram atingidos, por isso reiniciaram a caminhada, tropeçando e caindo algumas vezes, mas sempre animados por uma indomável vontade de vencerem aquele demónio que lhes gelava o sangue e os ossos. A minha irmã, pequena e frágil, já desfalecia de frio e cansaço, por isso pararam outra vez sob outra árvore, mas o meu irmão, consciente de que se ali ficassem muito mais tempo, gelariam e seria o fim de ambos, apesar de também exausto, colocou a irmã às cavalitas e com reacendida coragem, continuou a rasgar a neve e a escuridão, na fé de o estar a fazer em direção à aldeia, mas não estava, quando começou a ouvir a sineta teve que corrigir o rumo. Só se consideraram salvos, quando avistaram as silhuetas dos três silos.
Nunca esqueci aquele nevão nem o episódio que foi, aos meus olhos de criança, uma heróica aventura vivida pelos meus irmãos.
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A ESTRADA

 Não será fácil imaginar um menino de seis anos fazer a pé, sozinho, cerca de trinta quilómetros por estradas desconhecidas, todavia, isso aconteceu comigo, quando num impulso infantil decidi encontrar os meus pais, sabendo apenas que eles estariam algures numa herdade agrícola que ficava para os lados do sol do meio-dia.

Ao certo não sei qual era a minha idade, presumo que não teria mais de seis anos, porque ainda não frequentava a escola, e porque dificilmente poderia ter menos. O dramatismo daquele dia, ainda sobrevive na minha memória em pungentes pormenores que passo a contar.
Eu vivia com os meus pais em Monchique, mas naquele ano os meus pais foram num rancho de jornaleiros (grupo de pessoas em trabalho sazonal pago ao dia) para a monda do arroz na herdade da Comporta, no conselho de Alcácer do Sal, e como as crianças não podiam acompanhar os pais, fiquei entregue a um casal de camponeses, que vivia num monte em plena serra de Monchique.
Este foi o período, que me lembro, mais infeliz da minha infância. Viver com duas pessoas desconhecidas e idosas, num monte isolado, onde não havia outras crianças com quem pudesse brincar, e dormir num celeiro, lúgubre como o purgatório, tendo como cama uma enxerga de fatanas de milho sobre um monte de esteiras de cana e como agasalho a roupa do corpo e duas mantas para me tapar. Luz, só a do luar que entrava pelas frinchas da porta de madeira velha e carcomida, que uma aldraba fechava por fora. Mas pior que tudo, era o cheiro nauseabundo de batatas podres e não ter as atenções e os carinhos de minha mãe.
De noite, o isolamento e a escuridão violentava-me, provocavam-me pesadelos e terrores noturnos, constituindo um fértil campo para a minha imaginação. O medo fazia-me encafuar nas mantas, pois parecia-me ouvir que algo ou alguém mexia na aldraba da porta. Então fechava os olhos, apertando as pálpebras com força e juntava os joelhos junto da boca imaginando ser um bicho de conta (um daqueles bichinhos que, como defesa, se enrola até se transformar numa bola). Frequentemente tinha pesadelos que me faziam acordar em pânico, alguns eram recorrentes: Uma sombra invadindo a penumbra do celeiro, fazia-me olhar para a porta, aberta apenas no sonho, e no vão iluminado pelo luar via uma descomunal silhueta canina que acreditava ser um lobisomem. Outras vezes o lobisomem entrava de rompante no celeiro, acordando-me aterrorizado a debater-me com as mantas, que no meu pesadelo era a fera que saltara sobre mim. É espantoso, como tantos anos depois, a evocação destes pesadelos ainda me faz arrepiar.
Algumas vezes, em várias divagações oníricas, urinei na cama, fazia sonhando que estava a fazer num local apropriado (ainda me lembro da sensação de urinar a dormir e a sonhar, mais agradável do que fazê-lo acordado), depois passava o dia angustiado pela vergonha de a senhora ver a mancha de urina na enxerga.
Quando acabou a monda do arroz, o rancho onde os meus pais estavam integrados foi para a herdade agrícola Morgado do Reguengo, no concelho de Portimão, para as vindimas e apanha de azeitonas. Entretanto a minha mãe foi-me ver e perguntou-me se eu queria ir com ela ou se preferia continuar no monte, eu disse que preferia continuar no monte, talvez o dissesse por estarem presentes as pessoas que generosamente me tinha acolhido, porque depois de a minha mãe abalar arrependi-me, prostrando-me à noite, na solidão da minha cela, num choro violento.
Uns dias depois perguntei ao camponês se o Morgado do Reguengo ficava muito longe, ele estendeu um braço e com um dedo indicou um ponto algures na direção do sol e disse: "a seis léguas daqui". É óbvio que eu não sabia avaliar o que seriam seis léguas, mas logo me achei capaz de as fazer a pé.
Com argúcia infantil planeei a evasão e desde então à cautela, sem dar a perceber ao casal a minha vontade de fugir dali, comecei a amealhar, num canto escondido do celeiro, figos secos para me mitigar a fome na viagem. E numa noite, deitei-me com a ideia fixa que de manhã, quando a aldraba da porta do celeiro fosse levantada, empreenderia de imediato a viagem com destino à herdade, que sabia ficar para o lado do sol do meio dia. Pouco ou nada mais sabia da geografia do Mundo.
Na manhã daquele dia fui acordado pela ansiedade, era muito cedo, não entrava claridade pelas frestas da porta, mas não quis voltar a adormecer, fiquei acordado e imóvel, como um animal assustado dentro da sua toca, esperando ouvir os passos pesados do velho camponês. Em breve, como habitualmente, ele rodaria a aldraba.
Apesar da minha ansiedade permaneci deitado até ao momento que a porta foi destrancada, pois logo após levantei-me, coloquei os figos secos nos bolsos das calças, abri um pouquinho a porta sem fazer barulho e sub-repticiamente esgueirei-me para a rua.
Ainda era noite e havia nevoeiro. "Ainda bem que não chove" pensei (tinha chovido muito dois dias antes). Os contornos das coisas eram difíceis de distinguir, mas eu conhecia de memória o caminho carreteiro até à estrada alcatroada.
A claridade do dia fez-se presente já eu tinha percorrido alguns quilómetros, mas por conta da neblina continuei fresco e invisível, mas à medida que ia descendo a serra, a neblina tornava-se cada vez mais ténue, dissipando-se lentamente, até permanecerem apenas alguns farrapos planando no vale.
A temperatura subia. O sol fazia o seu percurso inexorável num céu azul claro, insidioso, parecendo querer castigar-me por tão insensata empresa. A humidade nas folhas das árvores e arbustos que ladeavam e estrada secara e comecei a sentir na boca a mesma secura.

A serra era toda a minha referência do universo, então foi com admiração que constatei que o mundo não era todo igual. A paisagem, antes serrana e a estrada tortuosa, de curvas e contracurvas sempre a descer, passou a plana e retilínea. Para trás tinha ficado o arvoredo que projetava sombra para a estrada, dando lugar a árvores dispersas de sombras esquivas.Veio-me agora ao pensamento, que um garoto maltrapilho, caminhando sozinho pela estrada, deveria chamar a atenção de quem o visse, mas ninguém me abordou a perguntar quem eu era, de onde vinha, para onde ia.
Acabaram-se os figos secos, a fome e a sede tirava-me a vontade de prosseguir. O sol atingira o zénite e reverberava vertical em baforadas de fogo, fazendo a estrada cintilar. Eu tinha os pés feridos. Mas tinha que continuar. "Tens que continuar, já falta pouco". Era este o pensamento que me guiava, como uma voz interior a segredar-me.
Quando já me encontrava no limite da minha resistência, surgiu no mesmo sentido uma carroça carregada de lenha puxada por duas mulas. O cocheiro, um homem idoso a quem faltava um braço, fez parar a carroça quando lhe perguntei se o Morgado do Reguengo ficava muito longe. "Fica perto, mais à frente encontrarás uma estrada de terra, segue por ela até encontrares três silos, é aí o Morgado". Perguntei-lhe o que eram silos e ele descreveu-os como sendo umas casas redondas e altas.
Estava perto do meu destino, todavia, sentia a solidão e o desalento como não a sentira antes. Doíam-me as pernas e os braços. Os meus pés não suportava pisar terra, os dedos estavam colados uns aos outros pelo sangue e lixo. Os meus lábios inchados e gretados. Tinha a garganta seca, a minha boca não produzia saliva. Os meus olhos ardiam e pareciam ter areia.
O cansaço, as dores, a sede e a fome, tiraram-me a vontade de continuar. Olhava a estrada de terra que parecia não ter fim. Não havia casas. Não havia gente. A que distância estaria a herdade? Quanto tempo mais teria que andar até encontrar os meus pais? Esquecera-me perguntar isto ao cocheiro e não havia ninguém a quem pudesse perguntar.
Quando olhava para a estrada de terra sem coragem de a percorrer, os meus olhos foram atraídos para dois pormenores a que devo a minha sobrevivência. A poucos metros de mim havia um pontão e por baixo passava uma ribeira (Ribeira de Boina), um pouco adiante havia árvores com pontos vermelhos sobressaindo do verde da folhagem, supus serem fruta boa para comer (eram romãs).
Entre a fome e a sede, a minha prioridade foi a sede. Dirigi-me para a ribeira. A água corria límpida, entrei na ribeira e bebi o néctar vital até me saciar totalmente. Lavei os pés, tinha feridas nos interstícios dos dedos, tomei banho sem me despir Depois dirigi-me para as árvores que supunha serem de fruta.
Muitas romãs na árvore estavam ao meu alcance, algumas estavam abertas, mostrando os bagos vermelhos. Provei um bago, era sumarento e doce, provei outro e outro.
Voltei à ribeira com algumas romãs. Comi sôfrego os bagos das romãs que abri com a ajuda de uma pedra cortante, amansando assim a fome que me torturava.
Água e fruta, embora não seja, do ponto de vista nutricional, uma refeição satisfatória, foram o maná divino que me restabeleceu a energia e a esperança (desde então, a Ribeira de Boina e as romãzeiras estão associadas, na minha memória, à minha sobrevivência).
Sentado na margem da ribeira, com os pés mergulhados na água, a sede e a fome saciada, caí no torpor, apetecia-me dormir ali, deixei-me cair de costas nas folhas largas e verdejantes das plantas da margem, e fechei os olhos para dormir, mas a voz interior que me guiava disse-me que tinha que continuar antes que fosse noite. Voltei à estrada de terra.
A última etapa, embora curta, viria a ser a mais difícil, pelas dores que as pedrinhas da estrada de terra provocavam nos meus pés feridos.
Talvez até seja possível, a quem ler isto que escrevo, imaginar como desgraçada e desesperada era a minha situação, mas é-me difícil descrevê-la. Lembro-me de pensar que se eu morresse, acabaria o sofrimento e os anjos levar-me-iam para o céu (o meu avô materno tinha morrido recentemente e tinham-me dito que os anjos levaram-no para o céu e ele estava bem). Ainda saboreava este pensamento quando avistei as três casas redondas e altas que o homem sem um braço descrevera como sendo os silos.
A visão dos silos recompôs-me o ânimo, embora exausto e ferido, estava finalmente perto do fim da minha estrada. Ali, naquela herdade, estariam os meus pais.
O sol já esmaecia quando entrei nas instalações da herdade. Soou uma sineta (anunciando o fim do dia de trabalho) e um homem apareceu, perguntei-lhe se sabia dos meus pais e ele indicou-me um armazém onde pernoitava um rancho, fui ao armazém, mas não encontrei vivalma, no entanto confirmei com alegria estar no local certo. Mesmo na penumbra reconheci a arca forrada a folha-de-flandres dos meus pais. Extenuado, estirei-me na cama que estava perto da arca, que supus ser dos meus progenitores, e adormeci.
Fui acordado pela minha mãe.
Eu pensava que a minha mãe ficaria contente quando me visse, mas, ao contrário do que eu pensava, se houve contentamento foi breve, pois logo se manifestou preocupada com o meu estado e por eu ter saído do monte sem dizer nada ao casal de camponeses. Um tempo depois chegou à herdade o pobre camponês, para dar a notícia à minha mãe do meu desaparecimento e saber se eu tinha ali aparecido. Coitado do homem, dera por minha falta na hora do almoço, procurou por todo o monte e montes vizinhos. Desesperado atrelou a burra à carroça e fez o mesmo percurso que eu fiz a pé.
Muitos anos depois fiz de carro o mesmo percurso. O conta-quilómetros registou 29, 600 Km.
O "Morgado do Reguengo" é agora um resort turístico com hotéis, piscinas de campos de golfe.

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

A PRIMEIRA VEZ


Com dezoito anos eu era um jovem provinciano inexperiente no que respeita ao amor e ao sexo, mas, como é próprio da idade, com alto nível de testosterona. Ansiava deitar-me com uma mulher, ser virgem parecia-me ser pouco próprio para a minha idade.

No dia do meu vigésimo aniversário, tive a minha primeira vez com uma mulher (era mais velha que eu), que se empregara na pensão onde eu estava hospedado em Lisboa. Chamava-se Márcia, tinha-a conhecido duas semanas atrás. Nesse dia eu chegara à pensão ao fim do dia e preparava-me para ir tomar um banho, mas ainda no corredor, uma das empregadas, uma minhota de palavrão fácil, ao passar por mim diz-me em tom confidencial: Há uma pessoa que te quer conhecer, inquiri, também em surdina, quem me queria conhecer, mas ela em voz alta, já a entrar na lavandaria, disparou: Despacha-te caralho, vais ficar preso pelo beicinho (escrevi uma palavra obscena, não é que eu goste deste tipo de linguagem, arrisco-me que me julguem mal educado, mas escrevi-a só porque quero ser o mais possível fiel aos acontecimentos e, como eu disse atrás, a empregada era minhota e no falar do Minho a dita palavra não soa a obscenidade). Dito daquela maneira, insinuando que era uma mulher que me queria conhecer, o caso adquiriu um cariz misterioso, quiçá até excitante.

Fui rápido a tratar da minha higiene, meia hora depois já eu estava à porta da lavandaria querendo saber quem me queria conhecer. A empregada minhota passava a ferro roupa de cama, mas nisto alguém me pediu licença para entrar e eu cedi-lhe passagem. Era uma mulher por mim desconhecida, a minhota disse-lhe: é este o moço. A desconhecida rodopiou e enfrentou-me, ficou tão perto de mim que não pude apreciar as suas formas. O rosto sim, de traços inconfundíveis do sangue africano. Pele morena, lábios afros realçados por um brilho lustroso, dentes muito brancos e bem alinhados. Cabelos negros ondulados, olhos grandes e brilhantes. A blusa de malha fina, justa ao corpo, enfatizava o volume dos seios. Enfim, uma mulher muito bonita, não só vista de frente, mas vista por trás. As formas do seu corpo, verdadeiramente esculturais, só no dia seguinte, quando ela percorria o corredor, as pude apreciar. Ela estava ciente e orgulhosa da beleza do seu corpo, pois quando dobrava a esquina do corredor e me surpreendeu a observá-la esboçou um sorriso e perguntou-me: sou gostosa? Fiquei hirto como um criminoso apanhado em flagrante. Corei.

Bom! Voltando ao momento em que conheci a Márcia: Ela, ereta na minha frente, com o rosto perto do meu, disse, numa voz suave e xaroposa, que tinha muito gosto em me conhecer (havia uma modulação na sua voz que não identifiquei logo, fiquei a saber mais tarde que a modulação era o sotaque brasileiro) e encostou os lábios húmidos na minha bochecha. Uma mulher, que não era minha mãe nem minha irmã, dar-me um beijo, mesmo sendo um beijo instantâneo como a bicada de um pássaro, fez-me sentir de imediato o fluxo da adrenalina a fazer subir-me pelas veias até à cara uma corrente quente e o batimento do meu coração acelerou o ritmo. Atrás, imóvel, a empregada minhota, observava a minha reação, mas eu, fascinado como um passarinho pela serpente, não dei um pio. Em certos momentos fico assim, acabrunhado, sem saber como agir, ou o que dizer (eu era, e ainda sou, de rubor fácil, às vezes pergunto a mim mesmo porquê este comportamento tão embaraçoso). A sensação que começou a ganhar forma no meu subconsciente, obedeceu às leis inevitáveis do desejo, pois desenvolvi logo um fascínio erótico por Márcia. A empregada minhota tinha razão, fiquei realmente preso pelo beicinho.

A recordação mais perene e recorrente que tenho de quando conheci a Márcia é a do beijo na boca que ela me deu uns dias depois. Uma recordação juvenil, que tal como outras recordações juvenis, insiste em sobreviver ao meu envelhecimento. Foi na salinha do meu quarto, para onde ela sugeriu que fossemos. O meu quarto situava-se no rés-do-chão, quase de frente da lavandaria, e tinha uma pequena sala, geralmente usada pelas empregadas, pois tinha um sofá, uma mesa e duas cadeiras.

Quando nos sentamos à mesa frente a frente, ela disse: Queria tanto estar sozinha com você, eu, vencendo o encalhamento, perguntei-lhe, gaguejando as sílabas: Porque a senhora queria estar sozinha comigo? Ela roçou os meus lábios com os dedos e respondeu: Por favor, não me trate por senhora, trate-me por você como eu faço com você, e acrescentou: Queria estar sozinha com você para te conhecer melhor, acho lindo você ter a fotografia de Rita Pavoni junto da sua cama.

Naquele ano, a cantora italiana Rita Pavone, de quem eu era fã, tinha vindo a Portugal e eu fui ver o seu concerto. No final do concerto recebi uma foto dela com dedicatória e autógrafo que, na falta de uma foto de namorada (porque namorada me faltava), coloquei emoldurada na minha mesinha de cabeceira. Assim a baixinha sardenta, era última coisa que eu via antes de dormir e a primeira ao acordar.

A Márcia fez referência à foto de Rita Pavoni, pousando delicadamente a mão sobre a minha, acariciando-a. Eu, sentindo o rubor afoguear-me o rosto, retirei a mão como se me tivesse queimado, mas ela agarrou-a e aprisionando-a na sua como se aprisionasse um passarinho, disse que me achava muito bonito. Era um cliché, mas um sentimento pueril de presunção encheu-me a alma. Foi nesse instante magnético que aconteceu o beijo. Por instinto tentei desviar a cara quando ela, segurando firmamento a minha mão, debruçou-se sobre a mesa e aproximou o seu rosto ao meu, fazendo-me sentir o calor do seu hálito, mas não consegui evitar que a sua boca chocasse com a minha. Não resisti, deixei-me levar pela volúpia do beijo. A sensação voluptuosa provocou-me uma imensa vontade de rir com que a contagiei, rimo-nos à gargalhada durante largos segundos. Ainda hoje tenho sensação da sua língua a entrar e rodopiar na minha boca, como a recordação mais doce da minha adolescência. Talvez eu, inexperiente nas questões sentimentais, tenha sucumbido com demasiada facilidade ao entorpecimento do espírito a que chamamos líbido, pois apaixonei-me pela Márcia.

A data do meu aniversário aproximava-se, coincidiria com o dia de folga da Márcia, a um sábado, então combinamos um jantar comemorativo num restaurante. Ainda recordo o seu sorriso malicioso quando disse: Sim, vamos jantar fora, depois será o que Deus quiser, não é meu bem? Uma frase que durante os dias imediatos se repetiria na minha cabeça como o refrão de uma canção ouvida ao despertar.

Tal como combináramos, no dia do meu aniversário jantamos num restaurante e no fim do jantar ela disse que tinha uma prenda para mim e disparou à queima roupa: Hoje vamos fazer amor! Com estas palavras mágicas, os portões prodigiosos para o paraíso abriram-se de par a par diante de mim. Você quer? Eu não respondi logo, não por me faltar resposta convicta, mas perante aquela proposta tão peremptória e decidida, achei que antes devia lhe fazer a confidência. Concentrei-me para não gaguejar (mas gaguejei): Não sei como me portarei, é que ainda sou... foi ela que se encarregou de completar a frase: Virgem!?

Anuí com um breve maneio de cabeça e um sorriso. Revelar-lhe a minha virgindade tranquilizou-me, foi como se lhe pedisse condescendência, paciência e carinho. Ela franziu a testa por um segundo e depois os cantos da boca ergueram-se também num sorriso. Ficamos, tanto ela como eu, alguns segundos sorrindo em silêncio, como que a esperar que a palavra «virgem» assentasse. Depois ela debruçou-se sobre a mesa e aproximou a sua cara da minha, os seus lábios afloraram a minha orelha: Não seja bobinho, disse, como se fosse um segredo, a tua virgindade é um trunfo, te faz extremamente sedutor, sorriu e acrescentou, serei muito carinhosa com você, e permaneceu a sorrir afetadamente à espera da minha resposta. O seu sorriso, e atitude afetuosa, ofereceram-me confiança e, com um sorriso reciproco, respondi: Então vamos fazer amor. Era a minha decisiva oportunidade.

De táxi fomos para a baixa da cidade, no Rossio abeiramo-nos de um hotel, à porta estava um homem de uniforme, que sem nada lhe termos perguntado nos disse haver quartos vagos com muito conforto e asseio. Entramos, a recepção era num canto da sala do bar, dei o meu nome, paguei e recebi uma chave. Para mim a situação era tão nova, tão estranha que, num misto de vergonha e vaidade, senti-me alvo dos olhares das outras pessoas que estavam por perto.

O hotel não tinha elevador e o quarto situava-se no terceiro piso. A Márcia procedeu-me e eu persegui-a num ímpeto que foi aquecendo a cada degrau até entrarmos no corredor e depois no quarto. Ela trancou a porta e abraçou-me, nossas bocas colaram-se, nossas línguas entraram num frenesim louco, ávidas de luxúria, permitindo-me saborear toda a volúpia que o beijo continha. Quando nos largamos ela, sem pingo de pudor, começou a despir-se, tão delicadamente como uma serpente a sair da sua própria pele e, virando-se de costas para mim, pediu para eu lhe desprender o sutiã (fi-lo com dificuldade por não saber como funcionava os colchetes de um sutiã), depois colocou-se completamente nua à minha frente. Eu, num êxtase supremo, subjugado pela visão do seu corpo nu, não consegui mover-me. Era a primeira vez na vida que experimentava o gozo de ver ao vivo uma mulher nua. Ela ficou quieta, deixando-me apreciar o seu corpo. Os meus olhos perscrutam cada pormenor do seu corpo, belo e carnudo de pele escura acetinada, seios túmidos, como os das mulheres cujas fotos eram publicadas nas revistas para adultos, proibidas na época. Impulsionado pelo Armageddon erótico que tinha lugar dentro da minha cabeça, desejei abraçá-la, acariciá-la, beijar o seu corpo, quis avançar para ela, mas, como num pesadelo, as pernas não me obedeceram. Tentei dizer que ela era linda, mas a emoção teceu-me uma teia na garganta e as palavras ficaram presas na armadilha. Ela permanecia quieta, a uma distância de dois ou três passos, com os olhos fixos em mim, húmidos, não sei se comovida pelo meu êxtase, se pelo meu pudor em lhe tocar.

Finalmente consegui falar: Você é tão bonita!, Ela fez um gesto teatral de modéstia e respondeu: Nesta figura? depois, fazendo uma pose irónica, colocando a mão na anca, e numa expressão de impaciente disse: Querido! Despe-te, e lentamente começou a despir-me. Comecei a sentir a minha vergonha a desvanecer-se e apressei-me a tirar os sapatos, as meias e as calças, mas deixei ficar as cuecas, foi ela que as puxou para baixo, e meu sexo, como que impelido por uma mola saltou, túrgido e pulsante. Ela afasta-se um pouco e abre os olhos histrionicamente, mordisca o lábio inferior, recua mais um pouco e queda-se a observar a minha virilidade. Era evidente que se apercebia da importância do momento, não só pelo prazer que ela própria tivesse, mas também pelo prazer que me proporcionaria.

Estranhamente senti-me confortável com a minha nudez exposta ao olhar da Márcia (acho que estar nu perante uma mulher é algo sensual e libertador, a mim faz-me sentir plenamente livre, não sei se isto também acontece com os outros homens). Ela abriu a cama e caiu nela pesadamente de costas, estendeu os braços para mim e, com um certo prazer no timbre vocal, disse: Vem amor! Sentindo-me como um passarinho na hora do seu primeiro voo, prestes a lançar-se no vazio, fui.

Passamos a noite sendo um do outro, como se espera de dois amantes, comungando momentos de pura intimidade. A Márcia, era treze anos mais velha do que eu, e experiente na arte do prazer sexual, eu fui o seu aprendiz, mas, verdade seja dita, não sei se tecnicamente fiquei qualificado.

Aturdido de felicidade, extenuado e sonolento, adormeci. Acordei abraçado à Márcia, ela dormia. A claridade vaga da aurora entrava no quarto através do intervalo das cortinas, da rua chegava o bulício dos ruídos madrugadores da cidade.

A Márcia acordou quando a libertei do abraço, disse: Bom dia amor, e sentou-se direita ajeitando a almofada nas costas e eu imitei-a, ficamos largos minutos assim em silêncio, como se executássemos algum ritual, até que ela disse quase num murmúrio que queria que o tempo parasse e ficássemos sempre assim, depois acrescentou qualquer coisa sobre orgasmo. A palavra orgasmo era-me desconhecida, um dia depois procurei-a num dicionário.

Foi assim, deste modo, que fiz a minha entrada na sexualidade adulta.