sábado, 17 de fevereiro de 2024

O baile

 

Bailes nunca foram a minha onda. Não sou dançarino, isto deve-se à minha personalidade introvertida. Na minha adolescência frequentei bailes, gostava de ouvir as músicas ao vivo e ver os pares rodopiando no salão, mas faltava-me coragem para convidar uma garota para dançar, mas num dos carnavais foi uma garota que me convidou.
Foi num baile de carnaval num clube recreativo, reparei nela assim que entrei no salão, ela dançava de um modo quase lascivo com um rapaz magricela com cara de fuinha. "Mal empregada para tal par", pensei. Fixei o olhar na face da linda criatura, os nossos olhares encontraram-se por uma fracção de segundo, e não mais despreguei os meus olhos dela.
Era uma garota curvilínea, de uma compleição sensual: Um rosto bem proporcionado, simétrico, por isso belo. Seios sumptuosos sugeridos por um decote ousado. Cintura marcada e ombros largos acentuados pelo decote da camisola que os deixava parcialmente nus. O cabelo negro e comprido, apanhado em topete, caía-lhe pelas costas como um rabo-de-cavalo. A saia de roda, de padrão colorido, passava-lhe menos de um palmo abaixo dos joelhos, como era moda naquela época, que então se chamava estilo «flausina».
Quando a olhava, como um predador a olhar a presa, dei por mim a pensar: “O que eu não daria para a ter assim nos meus braços”. Não poderia adivinhar que isso me custaria uma tablete de chocolate das mais caras à venda no bar do clube.
Quando a música terminou, ela foi sentar-se ao lado de uma senhora parecida com ela, sua mãe, supus. O escanifrado com quem dançava veio para os meus lados juntar-se aos amigos. No palco um sujeito anunciou ao microfone que a dança que se seguiria seria à inglesa, concluindo com um pedido: "As damas que façam o favor de irem buscar o seu par". Depois dos ajustes o conjunto sacou os primeiros acordes de uma nova música. Eu, com o olhar colado na «flausina» vi-a levantar-se e passar o olhar em volta de todo o círculo de rapazes que ansiavam por atrair a sua atenção, mas logo o desviou e cruzou-o com o meu. Olhou-me profundamente. Viu-me para além do que se vê. Só compreendi isto mais tarde. Tarde demais.
Um lento rubor subiu-me pelo pescoço às faces. Ela avançava direito a mim com um sorriso a pairar nos lábios. Eu, fazendo-me desentendido, desviei-me para lhe dar passagem, mas sem dela desviar os olhos. Porém, ela parou à minha frente pousando uma mão no meu ombro e sorrindo deu-me a outra para eu segurar. Eu disse para mim mesmo, o mesmo que dizia um dos versos da canção que se ouvia: "I just can't believe it's true", que mentalmente traduzi para português: "Não acredito que isto seja verdade".
Mas era verdade e era preciso agir, por isso tomei na minha mão a mão oferecida e com a outra enlacei-a pela cintura. Foi inebriado pela mistura de aromas quentes e doces que emanava do seu colo que ao ritmo da música fomos para o centro do salão onde fomos rodeados por vários outros casais .
Agora, com ela nos meus braços, pude confirmar como era bela e sensual. No seu colo perfumado que o decote panorâmico deixava ver, a pele parecia de seda chinesa e por duas vezes tive a tentação, que reprimi, de lhe tocar com os lábios. No entanto, não pude reprimir uma outra reação de uma parte do meu corpo que o pudor me impede de referir.
Certamente, o pau-de-virar-tripas, o tal lingrinhas com cara de fuinha, estaria de atalaia, não fosse a diva permitir o encosto dos corpos, mas mesmo eu dançando mal, a dança estava agradável, para mim, claro.
Quando a música ainda não ia ao meio, os músicos pausaram, exceto o da bateria que continuou a marcar o ritmo. Nos altifalantes ouviu-se o mesmo sujeito a ordenar: "Damas ao buffet".
Quando o baterista fez soar o último toque no címbalo, os outros pares desfizeram o enlaço e dirigiram-se para o bar, nós fizemos o mesmo. Era ali que ela me queria. Não abraçado a ela no meio do salão, mas ali. Tomei consciência disto quando chegamos ao balcão e ela apontou para as mais caras tabletes de chocolate (naquele tempo uma boa tablete de chocolate era muito cara). Afinal, não era ela a minha presa, mas eu a dela.
Não pedi nada para mim, receando não ter dinheiro suficiente para pagar a despesa. É que à entrada do baile parte do meu pecúlio ali ficara, pois naquele tempo as damas não pagavam a entrada e assim, eram os cavalheiros a suportar todos os custos.
Voltamos ao salão, o conjunto reiniciaram a canção suspensa e nós retomamos a dança com ela a empunhar o troféu, repito, uma das tabletes de chocolate mais caras existentes no bar do clube.
Querendo retirar algum dividendo do meu investimento perguntei-lhe, à laia de convite, se dançaríamos a música que se seguiria. Convite que ela recusou com um sorriso subtil e uma frase fatal: "Tenho pena, mas já estou comprometida".
Detestei aquela resposta, detestei a sua voz de contralto, quase masculina.
A música terminou, ela exibindo um sorriso triunfal e sacudindo a tablete à minha frente disse: "Obrigada pela tablete". Eu afivelei na cara uma expressão de zanga e ia mandá-la para certo lugar, mas a visão do recorte dos seus seios quando a camisola desceu alguns centímetros na zona do decote, fez que a frase que já me subia pela garganta se desfizesse numa discreta tossezinha. "Obrigado também eu, gostei de dançar contigo", disse-lhe como despedida. Ela deu-me um último sorriso e virou-me as costas agitando o rabo de cavalo e afastou-se levando com ela, além da tablete o seu perfume, que já não era quente e doce, porque os perfumes nos cheiram àquilo que sentimos, e o que eu sentia era frustação.
Momentos depois ainda a vi a dançar com o cara de fuinha, que vim a saber mais tarde ser o seu namorado.
Dino Conceição

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