quinta-feira, 8 de agosto de 2024

UM CHEIRINHO A JASMIM

 UM CHEIRINHO A JASMIM.

Num domingo de outono que fui à Costa de Caparica para ver o mar. Na praça havia uma feira de antiguidades e a curiosidade levou-me a deambular por entre as velharias. Numa das bancas estavam expostos discos antigos em vinil e os meus olhos fixaram-se na capa, descorada pelo tempo e manuseamento, de um «single» (disco de vinil com uma só música em cada lado) e um pensamento percorreu-me o corpo como um choque eléctrico. No reverso daquela capa estaria a dedicatória a mim dirigida pela minha primeira namorada e, num tropel de recordações, recuo sessenta anos.
Éramos muito novos, ela no início da sua carreira como cantora popular e eu um simples operário fabril.
Quando ela gravou o single, ofereceu-me um exemplar com a dedicatória na contra capa, mas no rodopio da vida acabei por o perder, e agora por um capricho do destino voltaria às minhas mãos.
Ligeiramente dobrado e com o coração apertado peguei o pequeno invólucro com o indicador e o polegar, como quem pega numa flor, e fiquei a observá-lo com atenção forense, deixando que o poder das recordações se apoderasse de mim. Esforcei-me para ouvir a voz dela na minha memória, depois passei os dedos pela fotografia do rosto dela, sentindo uma espantosa sensação de reencontro e num gesto inconsciente levei-o ao nariz, por breves instantes pareceu-me sentir o cheiro dela. Eu gostava do cheiro dela, um cheiro a fresco, a roupa lavada, a sabonete, a jasmim. Um dia disse-lhe: "Cheiras tão bem", e ela disse-me que era a jasmim. Ainda hoje o cheiro a jasmim está associado na minha memória ao cheiro dela.
Virei o invólucro na ilusão de encontrar a dedicatória a mim dirigida, no entanto a ilusão foi efémera. "Sou mesmo tonto", disse a mim mesmo. Aquele era apenas um outro disco dos muitos que foram editados.
Voltei a colocar o disco onde o tinha tirado, recuperei a postura, limpei os olhos, assoei-me, e dirigi-me para junto do mar.
Ver o mar é uma coisa que gosto fazer quando quero me ausentar das minhas angustias e tristezas. O impacto das ondas contra as rochas fascina-me, exerce em mim um efeito catártico e apaziguador.
Estava um dia bonito, o céu era de um azul único, denso, quase tangível. Soprando do mar uma aura salitrosa humedecia-me o rosto e o rumorejo dissonante da ondulação chegava-me aos ouvidos como uma melodia melancólica. Eu não me sentia bem, as recordações que o pequeno disco me sujeitou fizeram-me vítima de uma neurastenia inexplicável.
O mar estava um pouco agitado, estava maré cheia e as ondas rebentavam contras as pedras do esporão, projetando jactos de borrifos.
Levado por uma volição quase suicida fui sentar-me nas rochas, onde respingavam as ondas, entrando num torpor de uma espécie de autismo.
Não estou certo que estivesse consciente da passagem do tempo, pois ignoro quanto tempo que ali permaneci sentado, numa imobilidade de corpo e espírito, respirando os salitres do mar, diluindo nas águas os meus pensamentos. Já o sol se afundava no horizonte parecendo um navio a em chamas quando acordei do êxtase e saí do lugar. Fiz ali como que uma catarse, uma purificação emocional da minha alma.

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