sábado, 17 de fevereiro de 2024

Fui ver o mar

 Ontem esteve um lindo dia de sol, nem parecia Inverno. Depois do almoço, aproveitando o bom tempo dirigi-me para junto do mar. Ver o mar é uma coisa que gosto fazer quando me quero ausentar das minhas angustias e tristezas. Sobretudo se o mar estiver agitado. O impacto das ondas contra as rochas fascina-me, exerce em mim um efeito catártico e apaziguador.

Também gosto de reviver o passado, procuro-o muita vez, outras vezes é o passado que vem ao meu encontro e ontem algo transcendente me esperava. Uma lembrança tangível da minha adolescência.
Numa praça da povoação praiana havia uma feira de antiguidades e a curiosidade levou-me a deambular por entre as velharias. Numa das bancas estavam expostos discos antigos em vinil e os meus olhos fixaram-se numa capa, descorada pelo tempo e manuseamento, de um «single» (disco de vinil com uma só música em cada lado). Um pensamento percorreu-me o corpo como um choque eléctrico e fez-me juntar as mãos junto da boca. No reverso daquela capa estaria a dedicatória a mim dirigida pela minha primeira namorada e, num tropel de recordações, recuo cinquenta anos.
Éramos muito novos. Ela cantava em festas de casamentos, batizados e bailes populares organizados pelo pai dela, tinha uma linda voz e pose de cantora profissional. Um dia gravou um disco, que na altura fez muito sucesso, ouvia-se muito na telefonia, depois seguiram-se outros. Quando o primeiro foi lançado no mercado, enviou-me um exemplar pelo correio, com uma dedicatória na contracapa, "Para ti meu querido, desta miúda que te ama muito". Sem gira-discos onde o pudesse colocá-lo a girar, guardei-o, mas no rodopio da vida, acabei de o perder.
No início ela, quando andava em tournée, escrevia-me todas as semanas, a dar-me notícias da sua vida atribulada em festas e espetáculos por todo o país. Numa dessas cartas, a última que me escreveu, desejou-me sorte e felicidade, e no final, num "Post Scriptum", uma mensagem subliminar dava-me conta do fim do nosso namoro: "lamento muito meu querido, dizer-te isto, vou casar em breve". E assim acabou o nosso namoro.
Tive conhecimento do seu casamento, com um dos músicos que a acompanhava, por uma notícia na Crónica Feminina. Vi-a algumas vezes na televisão, mas ao vivo nunca mais. Não sei se ainda canta, há muito tempo que não sei dela, consequência de vivermos em mundos diferentes, e também porque me prometi nunca mais me encontrar com ela, mas agora, que os meus rancores do passado se esvaeceram, sinto saudade dela.
Ligeiramente dobrado e com o coração apertado fiquei por momentos a contemplar o pequeno envelope, de seguida peguei nele com o indicador e o polegar como quem pega numa flor e fiquei a olhar com atenção forense, deixando que o poder das recordações se apoderasse de mim, esforçando-me para ouvir a voz dela na minha memória, depois senti-lhe a superfície com a ponta do dedo. Passei os dedos pela fotografia do rosto dela, sentindo uma espantosa sensação de reencontro e, num gesto inconsciente levei-o ao nariz, por breves instantes pareceu-me sentir o cheiro dela e duas lágrimas assomaram aos meus olhos. Gostava do cheiro dela, um cheiro a fresco, a roupa lavada, a sabonete, a jasmim. Um dia disse-lhe: "Cheiras tão bem", e ela disse-me que era a jasmim. Ainda hoje o cheiro a jasmim está associado na minha memória ao cheiro dela.
Virei o invólucro na ilusão de encontrar a dedicatória a mim dirigida, no entanto a ilusão foi efémera. "Sou mesmo tonto", disse a mim mesmo. Aquele era apenas um outro disco dos milhares que foram editados.
Voltei a colocar o disco onde o tinha tirado, recuperei a postura, limpei os olhos, assoei-me, e dirigi-me para junto do mar.
Estava um dia bonito, o céu era de um azul único, denso, quase tangível. Soprando do mar uma aura salitrosa humedecia-me o rosto e o rumorejo dissonante da ondulação chegava-me aos ouvidos como uma melodia melancólica. Eu não me sentia bem, as recordações que o pequeno disco me sujeitou fizeram-me vítima de uma neurastenia inexplicável.
O mar estava um pouco agitado, estava maré cheia e as ondas rebentavam contras as pedras do esporão, projetando jactos de borrifos.
Levado por uma volição quase suicida fui sentar-me nas rochas, onde respingavam as ondas, entrando num torpor de uma espécie de autismo.
Não estou certo que estivesse consciente da passagem do tempo, pois ignoro quanto tempo que ali permaneci sentado, numa imobilidade de corpo e espírito, respirando os salitres do mar, diluindo nas águas os meus pensamentos. Já o sol se afundava no horizonte parecendo um navio a em chamas quando acordei do êxtase e saí do lugar. Fiz ali como que uma catarse, uma purificação emocional da minha alma.

Pode ser uma imagem de natureza, lusco fusco, horizonte e oceano
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