domingo, 18 de fevereiro de 2024

O nevão

 O Algarve, devido à sua geologia, divide-se em três regiões principais: Serra, Barrocal e Litoral. Na serra por vezes neva, enquanto no Litoral e Barrocal é uma ocorrência muito rara.

Não me lembro de ver nevar na serra nos seis anos que lá vivi após o meu nascimento, mas recordo-me de uma vez (teria eu sete ou oito anos) ter caído um grande nevão no barrocal, aliás, nevou em todo o Algarve. É minha convicção que nunca mais nevou assim no Sul, embora o meu saber não chegue para poder garanti-lo.
Na altura, eu e a minha irmã, andávamos numa escola primária, que distava cerca de oito quilómetros da casa onde vivíamos numa herdade agrícola, distância que habitualmente tínhamos de percorrer a pé por caminhos rurais ou atravessando as culturas, pois demoraria muito se fossemos pela estrada.
Na manhã daquele dia, eu e a minha irmã, saímos cedo de casa para irmos para a escola, não lavamos a cara porque a água no cântaro estava congelada. Na rua estava tanto frio que dos beirais dos telhados pendiam pingentes de gelo e pelas nossas bocas e narizes saiam nuvens de vapor. Como eu andava descalço (como era comum andarem os rapazes pobres da minha idade), os meus dedos dos pés retraíam-se no contacto com o chão gelado. A água nas poças do caminho também congelara e, depois de pisadas pelos animais que já tinham saído para as lavouras, eram lâminas de gelo cortantes como pedaços de vidro. Quando tínhamos andado não mais de trezentos metros, eu, não suportando o frio e ferimentos nos pés, voltei para casa. A minha irmã seguiu, provavelmente por estar usando sapatos.
Pouco tempo depois, começou a cair obliquamente do céu, impelidas pela aragem que soprava do lado da serra, que ali ficava a norte, umas farripas brancas, que foram gradualmente vestindo de branco os telhados, o chão, as árvores e as sementeiras. Foi para mim uma novidade ver tudo coberto de neve como se fosse por um lençol branco e, na minha ignorância do tamanho do mundo, pensei que todo ele estaria assim.
Antes da hora do almoço, como a neve não parava de cair, a sineta da herdade foi tocada a dar ordem para que os animais fossem reconduzidos às manjedouras e as pessoas que trabalhavam no campo foram dispensadas para retornaram às suas casas.
Depois do almoço deixou de nevar, apenas soprava uma aragem fria, e a neve deu azo a brincadeiras na rua, havia alegria nas famílias dos assalariados e jornaleiros a agredirem-se com bolas de neve, mas preocupação nos meus pais. A minha irmã não regressara da escola na hora habitual.
Como a minha irmã estaria retida na escola impedida de regressar a casa se não a fossem lá buscar, o meu irmão, um moço voluntarioso com apenas dezasseis anos, sem medir os riscos pôs-se a caminho para a ir buscar, foi uma decisão verdadeiramente audaz e viril, pois ele não conhecia o caminho para a escola porque estava na herdade havia pouco tempo e nunca fora para as bandas onde se situava a escola.
Da porta da casa vi o meu bravo irmão desaparece a cortar caminho por entre as alfarrobeiras todas vestidas de branco. Entretanto a noite caiu e começou novamente a nevar e como tardava o regresso dos meus irmãos, eu e os meus pais, embrulhados em mantas incapazes de nos protegerem do frio, fomos para junto dos silos, no limite da aldeia, esperá-los, mais ninguém estava na rua, só nós três num mudo desespero como se alguma coisa muito má estivesse eminente. Preocupei-me também com os pardais, era nos telhados dos silos que eles se refugiavam ao fim do dia, estariam lá naquela noite, também eles tiritando de frio, mortos talvez, a neblina gélida não me deixava ver, mas supus que os telhados estariam cobertos de neve.
Como o meu irmão e a minha irmã tardavam em aparecer, o meu pai foi pedir ao fiel do armazém que tocasse a sineta para que eles, eventualmente perdidos algures no nevão, atinassem com o destino.
Naquela noite de singular frieza, o silêncio era absoluto na escuridão absoluta. Não se ouvia, mesmo que diáfano, o ramalhar das árvores, nem o latir dos cães, nem o piar distante de um mocho solitário. Quando a sineta começou a tinir, foi como se lanças me trespassassem a cada badalada. Curiosamente, a sineta era tocada diariamente quatro vezes a horas certas, para dar ordem de pegar ou largar o trabalho a todos os trabalhadores da herdade, pelo meu irmão, ajudante do fiel do armazém, o seu toque era distinto, enérgico e de cadência certa, o daquela noite refletia a idade avançada e cansaço do fiel, que para chegar à açoteia onde estava a sineta, teve que subir um lanço de escada de vinte e cinco degraus.
Permanecemos junto dos silos, de olhos pétreos fixos na bruma gelada banhada de mistério, procurando o mais ínfimo sinal, o que me pareceram ter sido muitas horas, não sei quantas de facto, mas sei que foram talvez as horas mais angustiantes da minha vida. A certa altura surgiu, emergindo vacilante da névoa um vulto vago e informe que não parecia ser gente, avançando num passo lento, tão lento que não dava para perceber se avançava ou se estava parado, depois mais nítido deu para perceber ser o meu irmão com a minha irmã sobre os ombros.
Finalmente salvos para contentamento de toda a aldeia, é que entretanto toda a gente tinha vindo para a rua procurando saber porque tangia a sineta demoradamente, algo jamais acontecido a semelhante hora, parecendo anunciar uma desgraça. Ademais, tocada pelo velho Vieira.
Já em casa, o meu irmão enquanto se aquecia no fogo aceso na lareira e comia umas sopas de café quente, contou-nos a sua aventura.
Ele chegara à escola já no lusco-fusco do fim da tarde e uma funcionária entregou-lhe a irmã. Puseram-se então a caminho, mas entretanto a noite caíra e toda a paisagem foi engolida pela escuridão e assim eles só podiam seguir guiados pela intuição, a ausência de estrelas no céu, os trilhos imperceptíveis sob a neve e um frio demoníaco, fazia ser imprevisível o seu destino. Como não parava de nevar, houve uma altura que eles abrigaram-se debaixo de uma árvore, mas quase foram atingidos por uma pernada que dela se desprendeu cedendo ao peso da neve, por isso reiniciaram a caminhada, tropeçando e caindo algumas vezes, mas sempre animados por uma indomável vontade de vencerem aquele demónio que lhes gelava o sangue e os ossos. A minha irmã, pequena e frágil, já desfalecia de frio e cansaço, por isso pararam outra vez sob outra árvore, mas o meu irmão, consciente de que se ali ficassem muito mais tempo, gelariam e seria o fim de ambos, apesar de também exausto, colocou a irmã às cavalitas e com reacendida coragem, continuou a rasgar a neve e a escuridão, na fé de o estar a fazer em direção à aldeia, mas não estava, quando começou a ouvir a sineta teve que corrigir o rumo. Só se consideraram salvos, quando avistaram as silhuetas dos três silos.
Nunca esqueci aquele nevão nem o episódio que foi, aos meus olhos de criança, uma heroica aventura vivida pelos meus irmãos.
Dino Conceição.
Pode ser uma imagem de nevoeiro, estrada e árvore
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