sábado, 17 de fevereiro de 2024

Redfish

 São agora 04:30 da madrugada, estou levantado e sem sono. Já estive deitado, acho que dormi duas horas, acordei e não voltei a adormecer. Levantei-me e fui à cozinha colocar na panificadora automática os ingredientes para fazer um pão e, embora ainda não saiba o quê, vim para sala escrever.

Estou sentado, tenho à minha frente uma pequena mesa com o computador, é nele que escrevo.
São em noites como esta, de insónia e solidão que escrevo histórias sobre as minhas vivências pretéritas, mas agora não sei o que escrever. Se é a solidão que anima o génio, a mim hoje não produz esse efeito.
Encosto-me na cadeira para que o estado de descanso reactive o meu processo criativo. Fecho os olhos e puxo pela memória, mas apesar do esforço rememorativo não encontro uma recordação que justifique uma história. Acho que as minhas recordações vão-se apagando pouco a pouco sob o peso da idade.
Abro os olhos e percorro com o olhar a divisão da casa onde me encontro, a sala de estar, modestíssima com alguns móveis e objetos aos quais ganhei amizade. Sofá à direita, televisão desligada à esquerda e à frente a lareira com um relógio na prateleira da cornija parado por falta de corda, a mesa do computador acima citada e duas cadeiras, uma delas esta em que estou sentado.
Levanto-me, fecho a porta da sala para não ouvir o barulho da máquina a fazer o pão. Passeio pela sala, tento medi-la a passo, quatro por seis, se cada passo medir um metro, a sala terá vinte e quatro metros quadrados de área.
As quatro paredes oprimam-me. Abro a porta da sala e apago a luz, sento-me outra vez.
Sinto necessidade de me espreguiçar. Estou com sono, talvez agora adormeça. Desligo o computador, recosto-me na cadeira e fecho os olhos.
Não adormeci.
Ligo o computador, levanto-me e acendo a luz, dou corda ao relógio da lareira, acertando as horas pelo relógio do computador. Veio-me ao pensamento que o meu relógio biológico também precisa ser acertado. Eu não devia estar acordado a esta hora.
Volto a sentar-me para escrever este último pensamento, pouso os dedos sobre o teclado. Porém, antes de iniciar a escrita, olho para o chão e algo me arranca do solipsismo. Afinal não estou sozinho. Reparo que no chão está um bichinho quieto ao pé do meu pé direito, deve ser uma criatura inteligente, certamente que entre o correr para se esconder e o parar para passar despercebida, ilusoriamente protegida pelo seu mimetismo, do peso do pé que a pode esmagar, houve um rápido pensamento.
Poderei, num movimento miúdo, esmagar o mesquinho animal, mas pergunto-me, será a sua morte necessária ou justificável? Posso supô-lo assim quieto a querer fazer-me companhia. Esta hipótese, mesmo que fantasiosa e pueril, mais própria de um louco solitário, faz-me pensar que não o devo matar. Sou contra que se mate ou maltrate os animais, incluindo os bichos. Mesmo que por qualquer razão não gostemos de alguns bichos, devemos frear os instintos e acatar as razões da mãe Natureza. Claro que também tenho um lado mau, toda a gente tem. Não nego que sou bem capaz de matar um bicharoco se ele me for prejudicial, também existe em mim instinto de sobrevivência, mas agora abstenho-me de qualquer ação contra o animal.
Observo mais uma vez o pequeno ser que continua numa imobilidade absoluta, no qual todavia, palpitará um coração minúsculo pulsando de susto. Ocorre-me que geralmente não chamam-mos animais aos insetos e a outros bichinhos, mas na verdade é o que são. Também são criaturas de Deus.
Procuro na Internet saber algo sobre a criatura que imóvel no chão me faz companhia e fico a saber que é uma traça, um bicharoco que todos nós estamos sujeitos a encontrar nas nossas casas, é considerado um dos mais primitivos insetos conhecidos pelo homem, pois já existia no tempo dos dinossauros, o seu corpo cinzento com um aspecto prateado, fá-lo ser conhecido pela expressão inglesa «silverfish» (peixe de prata), esconde-se durante o dia em cantos escuros, alimentando-se de hidratos de carbono e celulose, pois possui um aparelho bucal mastigador que lhe permite comer papel e têxteis. Enfim! Uma praga com efeitos nefastos nos nossos bens, principalmente roupas e livros.
Na posse destas informações volto a olhar para o chão, para onde o bicharoco ainda devia estar, mas ele já se escondeu. Ainda bem para ele (é o meu lado bom que fala), porque agora estava decidido a matá-lo. Este pensamento não é bonito, não me orgulha. Mas claro, também existe em mim o desejo de proteger o que é meu.
No silêncio da sala sobressalta-me as pancadas lentas do relógio a dar as 8 horas da manhã e às narinas chega-me o aroma a pão acabado de fazer.
Está na hora de terminar esta prosa meio doida e ir fazer café.
Pode ser uma imagem de peixinho prata
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